Capítulo 1 – Não era um falcão?
20 de julho, 2 horas da tarde
– Tenha um bom dia, Sâmia. E procure não trabalhar tanto. Lembre-se de que a mente é complicada e a medicina ainda não possui pleno domínio do cérebro, mas os remédios ajudam e, se pensar positivo, em breve estará curada.
Com um leve sorriso, o médico acrescentou:
– Continue tomando os remédios. Não se esqueça de desviar seus pensamentos de qualquer fantasia que teime em aparecer.
– Tenha um bom dia, Dr. Donhill.
Eram sempre as mesmas palavras do Dr. Donhill e já passaram seis longos anos que o tormento não acabava.
“Sim, Sâmia, acredite que sua mente brinca com você.”
Até quando sua mente continuaria brincando com ela? Já havia perdido as esperanças, por mais que se esforçasse, por mais que tentasse acreditar que aquele tormento teria fim, já fazia muito tempo que não via progresso nenhum e todas as noites a insônia se fazia presente, para não mencionar os pesadelos que eram constantes nas poucas horas que adormecia. Já não se lembrava mais de quando fora a última vez que dormira uma noite inteira sem acordar com a sensação de que estava sendo estrangulada, e isso acontecia impiedosamente durante os últimos seis anos…
Assim que entrou no carro, deu o endereço ao taxista, retirou da bolsa um pequeno espelho para checar sua aparência e disse:
– Nada daquilo aconteceu! O Dr. Donhill disse que foi apenas minha imaginação.
Chegando em casa, foi direto ao banheiro e, enquanto esperava a banheira encher, disse ao espelho mais uma vez:
– Apenas sua imaginação, entendeu?
Se repetisse isso todos os dias, talvez acabasse se convencendo, afinal, já ouvira inúmeras vezes estudiosos falando que a força do pensamento era a ferramenta mais poderosa do universo. Sendo assim, os pesadelos desapareceriam e, então, poderia voltar a dormir oito horas inteiras como as pessoas normais.
– Se dormisse cinco, já seriam suficientes – disse para si mesma enquanto deixava seu corpo afundar na água quente, procurando não só lavar o corpo, mas a mente de todas as lembranças.
20 de julho, meia noite e vinte e cinco
Estava em uma festa. O lugar era completamente desconhecido. Havia uma multidão sem face que impedia uma visão mais clara; procurava alguém, e a urgência de encontrá-lo vibrava em todos seus poros.
Sâmia virou-se na cama, enterrando a cabeça no travesseiro.
Havia muita luz. A claridade intensa fazia seu olhar vagar sem um propósito, seu coração batia tão rápido quanto as asas de um pássaro rasgando o céu. A espera estava lhe torturando. Seus olhos buscavam aflitos.
Sâmia pôde sentir o hálito quente sussurrando atrás dela.
21 de julho, uma e vinte e cinco
A noite era escura e ela caminhava o mais rápido que podia pelas ruas desertas; estava desesperada. Já caminhava há mais de uma hora e não conseguia voltar para seu apartamento; era como se todo lugar familiar tivesse simplesmente desaparecido.
Ao dobrar mais uma esquina, o lugar se tornou ainda mais sombrio: quase já não podia enxergar, seu coração começou a bater mais rápido e sentiu desfalecer quando uma mão surgiu por entres os becos, agarrando seu braço. Tudo que ela viu foram aqueles olhos brilhantes e, depois, a voz terrivelmente familiar.
– Pensou que escaparia impune?
22 de julho, três e vinte e cinco
Ao chegar ao escritório onde trabalhava, ela notou que o prédio estava completamente vazio e sentiu um frio de alerta percorrendo seu corpo. Passou rapidamente por todas as salas em busca de um rosto familiar, mas foi em vão: o prédio estava realmente deserto. Dando meia volta, foi em direção à saída, mas agora ela estava bloqueada com uma enorme estátua coberta por um lençol. Sâmia sabia que estava em um sonho, um daqueles que se tem controle parcial da situação. Ela poderia fazer força para acordar, porém, a doce tortura de ver aquele rosto mais uma vez foi mais forte. Respirou fundo e puxou o lençol com uma determinação fora de seu controle habitual e, para seu horror, a estátua era exatamente como se lembrava. Já havia a visto milhões de vezes em livros de mitologia: o outro filho de Saturno, o que herdara o mundo dos mortos, só que dessa vez a face era bem mais cruel, lábios semiabertos em um sorriso de vitória.
Eram cerca de nove horas da noite quando Sâmia girou a maçaneta de seu apartamento após um dia de serviço e a saída antecipada da faculdade para se deparar com um par de olhos brilhantes em cima de sua mesa central. Seus pés recuaram, fazendo seu corpo tremer, e um arrepio gelado percorreu a espinha.
– Miauuuuuuuuu.
– Deus do céu! – disse, acendendo a luz. – Como conseguiu entrar?
O gato já saltara da mesa e desfilava graciosamente pela sala. Ela fechou a porta atrás de si e foi colocar os pacotes de compras na cozinha, surpreendendo-se ao notar que não havia derrubado nada com aquele susto. Também, quem poderia imaginar um par de olhos brilhantes esperando por você no meio da noite? Voltando para sala, abaixou-se e apanhou o intruso, aproximando-se de seu rosto.
– Como entrou aqui, hein, rapazinho?
Observou que as portas da sacada estavam fechadas.
– Deve estar trancado aqui o dia inteiro, já vou levá-lo de volta para casa.
Com o animal no colo, Sâmia se dirigiu ao apartamento ao lado e tocou. Enquanto esperava, admirava a beleza extraordinária do animal: um pelo dourado, quase fogo, tão macio que podia jurar que segurava uma pelúcia.
– Sim? – soou a voz abafada.
– Margarette, sou eu, Sâmia. Acabei de encontrar um de seus gatos em meu apartamento.
Abrindo a porta, a senhora exclamou:
– Minha querida, que bom lhe ver.
– Como vai, senhora?
– Entre,vamos, acabo de fazer uma torta e quero que experimente.
Margarette tinha 55 anos e era viúva, morava sozinha em seu apartamento e nutria extrema simpatia pela jovem desde o momento em que ela havia se mudado. A simpatia era recíproca e passariam muito mais tempo juntas se não fosse o trabalho de Sâmia como colunista no Diário de Nova York.
Embora a diferença de idade fosse grande, ambas se sentiam muito confortáveis: Margarette porque não havia tido filhas e Sâmia porque havia perdido a mãe com apenas nove anos de idade e, mesmo hoje sendo adulta, morando sozinha aos dezenove e tendo uma vida independente, nunca superou essa falta que uma figura materna fazia.
Margarette correu para a cozinha para apanhar o pedaço de torta sem ao menos prestar atenção no motivo que havia levado a amiga até a ela. Sua alegria era imensa ao poder partilhar ao menos alguns minutos.
Sâmia sentou-se no sofá enquanto ela se dirigia à cozinha; o gato dormia tranquilamente em seu colo e não se incomodou com a tagarelice de Margarette vinda do lado oposto.
– Mas me diga, querida, como andam as coisas? Chegou agora?
– Estão bem. Saí um pouco mais cedo da faculdade, fiz a última prova hoje. Em breve entro em férias no jornal e, sinceramente, não vejo a hora disso acontecer; preciso descansar! Cheguei agora mesmo, tinha passado no mercado para comprar algumas coisas.
– Já contei que Kevin chega em três meses?
– Sim, comentou há alguns dias.
Kevin era o filho mais velho de Margarette, estava há cinco anos trabalhando em Londres e agora havia decidido voltar para a América, transferindo a matriz de sua editora para a cidade natal. A mãe estava extremamente orgulhosa.
– Aqui está, querida – disse, colocando o prato sobre a mesa de centro.
– Obrigada. E aqui está seu fujão – disse, levantando o gato no colo e fazendo-o despertar.
Não era a primeira vez que Sâmia trazia os gatos dela de volta; suspeitava que ela os colocasse de propósito pela sacada, que era dividida entre os dois apartamentos, apenas para ter motivo de visitá-la.
– Esse gato não é meu – disse a senhora ao aproximá-lo do rosto.
– Não?
– Não, ele andava rondando o prédio; já o vi há cerca de três dias; sempre o deixo entrar e ofereço um pires de leite, mas ele logo se aborrece e vai embora.
– Então talvez esteja perdido – disse Sâmia, admirando a beleza do felino, com os olhos profundamente azuis.
– Eu converso com os animais, já lhe disse isso, não, querida?
– Sim, Margarette, já me disse – sorriu Sâmia.
– Eu já perguntei a esse rapazinho se ele quer morar aqui, mas ele disse que não.
– Ele disse que não? – perguntou sorrindo, colocando mais um pedaço da torta na boca.
– Te juro, menina. Quando perguntei, ele balançava a cabeça de um lado para outro, como se realmente estivesse dizendo “não”.
– E quando perguntei a ele se procurava alguém, ele disse que sim.
– Disse que sim? – questionou, erguendo as sobrancelhas e, nesse momento, Sâmia sentiu um vento gelado e, olhando em direção à janela, não foi uma surpresa constatar que estava fechada.
– Quando perguntei se procurava alguém, ele saltou desse mesmo sofá que está vendo agora e começou a arranhar a porta. Assim que a abri, ele se postou no meio do corredor e olhava para todas as portas, como se estivesse esperando que delas saísse alguém.
Sâmia deu uma risada forçada. Levantou-se para colocar o prato na cozinha.
– Deve ser um gato muito inteligente.
Seu mal-estar agora era constante: não sabia dizer bem o quê, mas por alguma razão essa história não a havia tocado de forma positiva.
– Minha menina, quando Kevin chegar, faço questão que o conheça, é um rapaz encantador, não digo isso porque é meu filho.
Margarette recolocara o gato no chão e se sentava ao lado da amiga que havia retornado.
– Espero poder conhecê-lo em breve também, Margarette.
– Gostaria que fosse conosco a nossa fazenda. Poderia passar alguns meses por lá… Como anda sua insônia?
– Continua de mal a pior, antes tinha pesadelos poucas vezes por semana e nunca me lembrava dos sonhos, agora já é o terceiro dia que estou sendo atormentada e, quando acordo, são tão reais que poderia tocá-los.
– O que anda sonhando, menina?
Ela corou, não sabendo o que responder. Margarette já era dada a efeitos sobrenaturais e sua casa vivia rodeada de velas e amuletos de sorte. Não queria instigar ainda mais sua imaginação, contando a ela sua experiência ou fazendo com que ela oferecesse para ler sua sorte ou algo assim.
– Sonho com um antigo namorado que me persegue.
As palavras saltaram de sua boca antes que pudesse perceber e ficou se perguntando por que se referiu a ele como namorado.
– Minha doçura, você vive sozinha demais, sua família longe, você precisa sair. Vive grudada com seus livros; nem ao menos vem me visitar. Seus sonhos significam que você quer um namorado novo, é seu inconsciente.
Sâmia sorriu bem humorada.
– Talvez! Já faz muito tempo que não tenho vida social, esse trabalho e a faculdade estão tomando todo meu tempo.
– Quando Kevin chegar, vamos à fazenda, tudo bem?
– Acredito que mereço um pouco de descanso, tenho apenas mais dois livros para trabalhar esse ano e, assim que terminar a resenha deste, ficarei livre por dois meses. Se eu terminá-lo agora em minhas férias, poderei viajar com vocês.
Sâmia olhou para o relógio e levantou-se dizendo:
– Margarette, embora não tenha tempo de passar com você o quanto gostaria, saiba que lhe tenho muito carinho e farei de tudo para conseguir viajar, mas agora preciso ir, quero terminar o quanto antes meu trabalho.
Margarette a acompanhou até a porta e se despediu.
– Tenha bons sonhos, querida, e saiba que quando Kevin chegar tenho certeza que ele fará com que você esqueça qualquer namorado que venha do passado para atormentá-la.
Balançando a cabeça negativamente, Sâmia gargalhou.
– Então a senhora já está fazendo planos pelas minhas costas, hein?
– E pelas dele também. Kevin não sabe de nada, mas tenho certeza que vocês dois, assim que se encontrarem, irão se apaixonar, casar e…
– Calma, calma… – ela disse sorrindo. – Tudo há seu tempo, sim?
– Não estou interessada em relacionamentos, Margarette.
– Não está agora, porque ainda pensa em seu antigo namorado, mas Kevin irá fazer com que o esqueça, eu tenho certeza.
Olhando para o outro lado da sala, observou o gato que saltara da poltrona para a cômoda e balançava a cabeça negativamente. Sâmia voltou seus olhos a Margarette e disse com uma urgência de partir:
– Vamos ver, sim? Tenha uma boa noite. – Com um sorriso, se afastou rapidamente, voltando a seu apartamento.
– Mas que ótimo, agora esta noite vou sonhar com gatos em vez de demônios – suspirou, dirigindo-se para tomar um banho.
Sâmia amadureceu rapidamente por um lado, embora, por outro, era considerada pelos médicos um tanto desequilibrada, tendo certos distúrbios que a medicina ainda não poderia explicar. Tudo começou aos seus treze anos, mas ela sabia que havia iniciado muito tempo antes.
Ela começou a apresentar sinais de desequilíbrio dentro de casa e seu rendimento escolar havia caído drasticamente. Seus pais, extremamente preocupados, fizeram com que ela realizasse todos os tipos de exame, embora apenas houvessem acusado que Sâmia sofria de um leve sonambulismo comum entre adolescentes, segundo os médicos. Os demais exames não encontraram nada de anormal e, no entanto, seu estado era cada vez pior: perdeu cerca de dez quilos, não se interessava por absolutamente nada e o pior de tudo é que nunca mais foi capaz de dormir.
Ela própria se denominava louca, mas se esforçava para parecer normal. Como era possível uma louca ter conseguido uma vaga tão almejada naquele jornal?
Começou a trabalhar muito cedo, ajudando os vizinhos em pequenos afazeres domésticos, depois sendo babá; aos dezesseis anos, começou a ajudar em um jornal local atendendo ao telefone. Sua vida havia mudado drasticamente: ela queria sair de casa e, para isso, sabia que, além de trabalhar, precisava de boas notas na escola: era uma exigência do Diário de Nova York, onde pretendia conseguir uma vaga.
Seu pai não era a favor de a filha trabalhar tão cedo, até deu a ela uma quantia absurda de dinheiro, a fim de que deixasse guardada no banco para quando quisesse qualquer coisa, parte que ele entregou sendo por direito após a morte da mãe. Contudo, nada a fez melhorar e o único interesse que ela demonstrava era trabalhar e se fazer útil. Depois de anos com a filha naquela maneira, achou que qualquer coisa que chamasse sua atenção valeria a pena.
Jacob também procurou auxílio médico quando Sâmia começou a apresentar aqueles distúrbios, ele amava a filha e se sentia culpado pelo estado dela. Sabia que por mais que ela tentasse ser gentil com Jane, sua segunda esposa, dentro dela havia uma revolta por substituir sua mãe.
Mas o que ele poderia fazer? Sua primeira esposa, Samantha, havia morrido em um acidente de carro quando Sâmia tinha apenas nove anos e seu irmão mais novo apenas nove meses; como ele poderia manter uma família sem uma mulher para cuidar dos filhos?
Embora soubesse que Jane causara certo desapontamento, ele não conseguia entender o que acontecera realmente com ela. Sâmia demonstrou toda revolta aos nove anos, logo quando ele se casou, mas foi apenas por alguns meses. Depois ela começou apenas a ficar silenciosa, guardando suas emoções e pensamentos para si mesma, porém, o mais estranho foi pouco depois que ela completou treze anos: a partir daí, ela ficou totalmente fora do controle: acordava gritando no meio da noite, parou de comer e estudar. O pai puxou várias vezes pela memória, enquanto frequentava as sessões de terapia familiar, mas não chegou à conclusão de nenhum fato. Se Jerry, filho com sua segunda esposa, tivesse nascido naquela época, ele até entenderia o ciúme de um novo irmão, mas Jane só descobriu que estava grávida meses depois do novo comportamento dela.
23 de julho, uma e vinte e cinco
– Não poderia carregar comigo o peso de ter uma morte em meus ombros – ela disse com voz firme, encarando aqueles olhos cinza.
– Uma vida justifica outra, não é? Típico dos mortais…
Foi a primeira vez que ela viu aquela face dura e sarcástica adquirir um ar de tristeza. Finalmente havia ganhado o último jogo e agora poderia voltar para casa e recomeçar sua vida; uma vida justifica a outra? Na época, achava que sim, a dela por uma família inteira…
Assim que completou dezoito anos, ela comunicou que iria se mudar. Sem dúvida, foi uma surpresa para a família, mas eles já haviam feito tudo que podiam para ajudar e, sem nenhum resultado, Jane jogou fora tudo que havia encontrado em seu quarto e pela casa, tudo que falasse de cultos, magia e misticismo, pois esse tipo de leitura era definitivamente arriscado para uma mente tão perturbada. Aliás, ela achava que esse tipo de leitura não deveria existir para nenhum tipo de mente.
Então, Sâmia se mudou com uma amiga apenas por dois meses, depois já poderia ter seu próprio apartamento e, diferentemente de outras crianças, ela guardou todo dinheiro que ganhou desde que decidiu que se mudaria, fora a boa ajuda que conseguiu com os móveis que herdou do avô. Embora o pai dissesse que tudo aquilo não passasse de coisas inúteis, para ela, que pretendia montar um lar, qualquer coisa era bem-vinda. Entulhou tudo na garagem por vários meses, e ninguém ousava tirar, temendo que fosse motivo de uma nova crise nervosa.
Obteve sucesso em seu trabalho e agora dividia uma pequena coluna com outros críticos literários. Ela gostava do que fazia: lia livros de magia e todo tipo de ficção e depois fazia uma crítica sobre eles; ainda ajudava os escritores em início de carreira, pois o jornal oferecia um espaço a escritores iniciantes. Muitos mandavam pequenos trabalhos, como contos, antes de procurar uma editora, e ela se encarregava de dar sugestões e fazer a revisão necessária. Assim, achando um trabalho em que valesse a pena investir, os superiores encaminhavam para algumas editoras com as quais tinham contato.
Mesmo sabendo que a magia deveria ficar fora da sua vida e que ela fora a causadora de toda má sorte que a acometeu nos últimos seis anos, ainda assim era o que ela gostava e o que ela sabia fazer de melhor. Era uma adulta responsável, se sustentava, ia mensalmente ao psiquiatra e quem a conhecia não poderia dizer os tormentos que ela vivia ou a fantástica história que viveu.
24 de julho, duas e vinte e cinco
Ruídos de taças tilintavam, o salão ecoava os risos, uma multidão presente. Ela não se perturbou em procurá-lo; sabia que estava entre os dançarinos em algum lugar. Por que procurar? Apareceria eventualmente.
E logo estavam dançando entre pessoas desconhecidas.
25 de julho, quatro e vinte cinco
– O que aconteceria se eu tivesse ficado?
Ele a observava em silêncio.
– O que teria acontecido?
Silêncio
– Responda!
– Pergunta errada – falou a voz fria.
– A pergunta é: por que eu permitiria que alguém como você ficasse em meu mundo?
Levando as mãos à cabeça, ela cobriu as orelhas, tentando abafar a voz, mas o som parecia estar dentro de seu ouvido, dentro dela. Cerrando os olhos, Sâmia sabia que estava enlouquecendo.
26 de julho, cinco e vinte e cinco
Era um fim de tarde e estavam juntos no topo de uma colina. Admiravam a paisagem, a brisa a tocar o campo florido. Tocando levemente seu queixo, fez com que ela olhasse em seus olhos.
– Adeus, Sâmia!
Seus olhos encheram-se de lágrimas e ela não fez menção de evitá-las.
– Não vá embora!
Seus olhos escureceram e o sorriso irônico reapareceu.
Você me deixou uma vez. Não perderia essa oportunidade agora.
Enquanto observava ele se afastar, as lágrimas transformaram-se em um choro desesperado e a sensação de perda era intensa. Logo, o único ruído presente eram seus soluços.
Sâmia acordou procurando-o em sua cama e notou que seu travesseiro havia se molhado pelas lágrimas derramadas.
Era ainda muito cedo e ela já esperava por um táxi em frente ao seu condomínio. Olhando para trás, notou a presença do suposto gato de Margarette observando-a no sofá da portaria. Ela deu alguns passos em direção à porta e parou para olhá-lo pela porta de vidro.
– Bom dia, Senhorita Rolfe já indo trabalhar?
Ela deixou escapar um grito abafado.
– Desculpe, não quis te assustar.
– Não foi nada, Daniel, estava distraída. Algum recado para mim?
– Até agora não. Tenha um bom dia. E, passando pela porta de vidro, dirigiu-se ao elevador.
Sâmia notou que Daniel reparou no gato e falava alguma coisa com ele enquanto esperava pelo elevador. Observou sua testa franzir ao ver o gato balançar a cabeça negativamente. Daniel continuou olhando para o gato com expressão estranha, quando o elevador fechou as portas, levando-o para cima.
Nesse momento, o gato se virou e saltou, passou pela porta, sentou-se nos degraus e começou a fitá-la.
O táxi acabara de chegar e ela entrou, ainda com os olhos fixos no animal. Podia jurar que, quando o carro começou a andar, o gato havia lhe piscado um olho.
– Sâmia? Sâmia Rolfe?
Ela olhou para o taxista e uma expressão familiar surgia vagamente.
– Sim, nos conhecemos?
– Derik O’nil, estudamos juntos, lembra?
Sâmia olhou atentamente agora que ele se virava para lhe estender a mão. Ela não podia acreditar. Por quantos dias não imaginava como seria esse reencontro e, agora que havia chegado, ele nada mais significava. Relembrou de quantas lágrimas amargas seu coração de adolescente havia derramado pelo taxista. Aos seus doze anos, não era ninguém comparada a ele, o garoto mais lindo e mais popular da escola.
– É claro que me lembro.
Sâmia tentou sorrir, mas seu pensamento voltou ao passado com certa mágoa. Ele nunca a olhava como mulher, nunca viu o quão madura ela era, sempre namorava garotas mais velhas, destruindo seu sentimento. Mas hoje ele estava ali, bem diante de seus olhos, e muito diferente do que era: já não era tão bonito. Ela começou a pensar se algum dia foi ou se ela havia projetado nele alguém tão inatingível, alguém a quem ela não era digna.
Ele continuava falando sem parar e tudo o que ela conseguia fazer era acenar com a cabeça.
– Vamos marcar para sair algum dia, o que acha? – ele falou, estendendo-lhe um cartão.
– Ah, claro, pode deixar. Obrigada, Derik.
Sâmia pagou e desceu do táxi que havia parado em frente ao seu trabalho. Ela entrou, mas Derik não saía de seu pensamento. Agora estava mais animada, talvez apenas precisasse de mais tempo. Se ela tinha esquecido Derik, por quem esteve apaixonada por mais de um ano, então iria esquecer também aquele demônio.
Ao chegar a sua sala, a empolgação de segundos atrás já estava passando. Se antes achava que poderia esquecê-lo, agora já duvidava, afinal, Derik esteve em seus pensamentos por um ano inteiro e ela o esqueceu alguns meses depois; agora, aquele demônio foi apenas um dia e, desde então, ele assombrava sua vida.
Ela não tinha muitos amigos, não tinha, na verdade, nenhum, com exceção de Magarette, que era sua vizinha. Ela não tinha ânimo para conversar; quando as pessoas falavam, as conversas ficavam enfadonhas, ela se distraía pensando em outros assuntos e, muitas vezes, deixava os demais falando sozinhos; chegava a ser constrangedor, mas ela não conseguia evitar. Nada que tinha nesse mundo lhe era interessante, embora todos os dias ela se esforçasse para parecer normal e viver bem. Alguns homens se aproximavam dela quando estava sozinha em algum restaurante, ou algum outro lugar, mas não os que a conheciam em seu trabalho, pois eles sabiam que ela era muito estranha e, como comentavam às escondidas, o que ela tinha de bonita tinha de desequilibrada.
Como era muito eficiente em seu trabalho, a diretoria não se incomodava com os comentários maldosos a seu respeito; para eles, pouco importava se ela falasse sozinha ou não falasse com ninguém, desde que entregasse sua resenha e sua crítica na semana prevista e, principalmente, que achasse o próximo best-seller, porque isso era sua especialidade: ela tinha o dom de advinhar qual dos inúmeros contos que recebiam seria um sucesso.
Ela também não se importava com alguns olhares maldosos, não usava seu tempo com nada que não fosse seu trabalho e, quando alguém tentava se aproximar, ela educadamente desviava ou dispensava tanto pretendentes a amigos como possíveis conquistas.
Sâmia não tinha uma hora especifica para almoçar. Às vezes, descia para o restaurante do prédio, outras atravessava a avenida e ia tomar um suco em algum café. Sempre levava suas anotações consigo, assim, era mais uma maneira de manter as pessoas afastadas; fingindo estar ocupada lendo, dificilmente alguém a interrompia.
Naquela tarde, ela foi até a esquina e se sentou do lado de fora para aproveitar o dia lindo de sol que fazia, pediu um suco e uma salada e começou a mexer em suas anotações; gostava de lugares abertos para escrever; começou escrevendo pequenos pensamentos e agora estava tentando trabalhar em um conto; é claro que não havia comentado com ninguém, já que ela ainda não havia terminado a faculdade e não deveria se arriscar de amadora. Mas sentia que algum dia poderia escrever uma boa história.
Sua mente, nesta tarde, estava particularmente perturbada: os pesadelos que andava tendo estavam muito nítidos, sentia o coração apertado e procurava, com todas suas forças, não pensar no que havia acontecido, ou em sua imaginação, porque nada tinha acontecido de verdade, isso não era real. Não podia ser.
Um trovão explodiu alto, assustando não só ela como as demais pessoas que ali também estavam sentadas. O que minutos antes era um belo dia de sol transformou-se num escuro de nuvens negras que cobriram o céu.
– Vai chover! – gritou alguém, mudando de lugar e indo para a área coberta.
Ela continuou ali, olhando o infinito e sentindo um vento muito forte que começara a soprar. Isso era muito estranho, nunca havia visto uma mudança de clima assim; a temperatura caiu de uma forma que já se tremia de frio ao permanecer ali.
– Não quer entrar?
Ela saiu dos seus pensamentos quando ouviu a voz do garçom, que já colocava a mão na cadeira para que ela levantasse.
Ela levantou e guardava seus papeis na pasta enquanto várias pessoas também se levantavam e iam para dentro do café. Os grossos pingos de água começaram, mas ela não conseguia se mover. Seus olhos pararam do outro lado da rua, de onde um estranho na calçada a olhava fixamente.
O dia já estava completamente nublado, dificultando a visão, e a temperatura caíra drasticamente. As rajadas do vento gelado batendo em seu rosto a faziam sentir que desta vez não estava sonhando.
O homem estava em vestes escuras e uma longa capa negra; ela não conseguia ver muito bem seu rosto; a forte chuva agora já impedia sua visão.
– Moça! Moça, algum problema?
O garçom voltara, agora segurando um guarda chuva. Ela voltou para onde o estranho estava, mas ele já havia desaparecido. Deixou-se conduzir pelo garçom e, somente quando entrou, se deu conta do quanto estava molhada e com frio.
– Um uísque, por favor.
Sâmia viu seu colega de trabalho sentar-se no bar, quase a seu lado. Ele sorriu levemente e ela tentou retribuir.
– Algo para beber?
– Apenas água, obrigada, eu perdi o apetite.
Sâmia pagou pela comida que pediu, mas nem chegou a tocá-la. Ficou ali com a garrafa de água, esperando que a tempestade passasse.
Ela levou uma mão à cabeça e, massageando a nuca, tentava se acalmar.
– Você não é doida, não é doida, você não viu nada, não viu nada.
Ela falava em sussurros, mas poderia até mesmo ter falado alto que ninguém teria notado, pois o barulho era intenso devido à multidão de pessoas que entrava para se abrigar da inesperada tempestade.
– Trabalha na previsão do tempo ou é vidente?
Sâmia levantou seus olhos e seu coração quase parou. O homem que vira do outro lado da rua estava ao lado de Douglas, que sorria com seu copo de uísque na mão.
O estranho sorriu e passou a mão nos longos cabelos dourados.
– Desculpe? – o estranho perguntou.
– O sobretudo – Douglas disse, apontando para o casaco.
– Para andar com um desses no dia lindo que estava fazendo há minutos atrás, ou trabalha na meteorologia ou é vidente.
– Acho que apenas sou um homem de sorte – respondeu o estranho, sorrindo e sentando-se a seu lado.
Agora estavam os três ali no balcão e ela não conseguia ver ou ouvir mais ninguém. Havia algo de estranho naquele homem, ele não parecia humano, e ela continuava a conversar consigo mesma.
– Vamos, Sâmia, não seja maluca, ele tem um sobretudo apenas, nem era uma capa.
Ela brigava com seu inconsciente quando Douglas estendeu a mão para ele e se apresentou.
– Douglas Anderson.
– Leander. Leander Simons.
Sâmia respirou aliviada: talvez ela apenas estivesse imaginando coisas, ele tinha nome e sobrenome! Não podia ser um daqueles… Mas e se ele estivesse mentindo?
– Trabalhamos no jornal aí em frente – Douglas disse, apontando para ela.
– Trabalha nesse prédio?
– Não, vim apenas ver uma pessoa.
Os olhos dele pararam nos dela, e um frio percorreu seu estômago.
“Por que ele tinha dito que veio ver uma pessoa e não se encontrar com alguém? Ver é uma coisa, se encontrar é outra bem diferente. Ver era apenas observar… Cala a boca, Sâmia!”
– Permita-me.
O estranho havia arrancado o casaco e colocado sobre seus ombros. Essa atitude inesperada a deixou sem reação.
– Obrigada, não é necessário…
– Eu faço questão, minha senhora.
As pernas de Sâmia amoleceram. “Minha senhora!” – ele dissera, ele era um deles! Era um demônio que viera buscá-la!
Lembrou-se com nitidez agora da última vez que fora chamada daquela maneira, o convite, aqueles olhos frios, aquela tortura embriagante…
– Com licença.
Sâmia saiu às pressas, passando entre o aperto de pessoas; estava sem ar, precisava voltar a sua sala, tomar seu calmante e respirar um pouco.
– Ela levou seu casaco – Douglas disse ao homem.
– Está tudo bem, eu pego outra hora.
– Ah, desculpe, não sabia que já se conheciam. Ela é assim estranha, de repente larga tudo que está fazendo e desaparece… – Douglas tentou justificar.
– Não nos conhecemos.
– Não? Mas… Não se importa com o casaco?
O estranho sorriu.
– Tenho certeza que iremos nos encontrar de novo.
– Preciso ir.
Leander saiu do bar e Douglas deu de ombros; gente estranha atraía gente estranha.
27 de julho às três e vinte e cinco
Ela olhou pela última vez o imenso tabuleiro de xadrez, observou os passos dele que se aproximavam dela.
– Me deixe voltar pra casa.
– Não vou impedi-la.
Ela voltou seu rosto para a porta que a levaria de volta a seu mundo e voltou a olhar para ele.
Seus pés não conseguiam mais se mover e ele pareceu notar.
– Aquele – disse, apontando para o luminoso portal – não é um mundo para alguém como você.
A voz não tinha emoção nenhuma e o rosto dele estava totalmente rígido; por um segundo ela achou que vira um traço de apreensão, mas logo havia desaparecido.
– É meu mundo, de onde nunca deveria ter saído.
Sâmia atravessou e, com ela, toda a dor e tristeza. Fez o que tinha que ser feito. Pela primeira vez tomara uma decisão adulta, mesmo que, a partir daquele dia, sua vida havia sido deixada para trás.
28 de julho às quatro e vinte e cinco
– Me dê sua mão.
Ela hesitou, mas depois acabou por aceitar e ele a ajudou a pular sobre as pedras de um rio que corria tranquilamente.
-Por que vem me ajudar? Estou jogando contra você, sabia?
– Estou ciente disso.
Os olhos dele agora eram sarcásticos e ela teve medo de estar ali sozinha ao seu lado, chegou a pensar que ele poderia matá-la afogada.
– Eu costumo salvar meus adversários de perigos insignificantes.
– Por quê? – ela perguntou em voz firme, tentando parecer destemida.
– Para que eles permaneçam intactos até a hora que eu possa destruí-los.
Ela sentiu que iria desmaiar: seu coração disparou diante daqueles olhos frios, se agarrou ao travesseiro e acordou com falta de ar.
Dois dias haviam se passado e nada daquele homem estranho voltar ao jornal procurando por ela. Douglas lhe dera o recado, dizendo que o rapaz dissera que iam se encontrar de novo, mas ele não aparecera.
Ela já estava mais tranquila. Depois de uma consulta marcada com urgência com o Dr. Donhill, ela se acalmou e ele a convenceu que o estranho era apenas um homem normal, que estava disposto a ajudar, emprestando-lhe o casaco; um homem normal e, principalmente, humano!
Era estranho que ele não tivesse aparecido, talvez estivesse ocupado com algum negócio…
Sâmia se levantou e apanhou sua pasta, ia descer um pouco e comer alguma coisa. Entrou no elevador e começou a ler suas anotações. Ela se distraía de tal modo, vivendo tão reclusa em seu mundo, que não via ou ouvia nada a sua volta. Quando chegasse ao térreo, não saberia dizer quantas vezes o elevador abriu as portas ou se alguém havia-lhe desejado boa tarde.
– Hoje não vai chover, poderá almoçar tranquila.
Ela prendeu a respiração e começou a olhar para os pés dele; viu as botas de couro negro.
Ela teve que admitir que ele não se vestia como os cavaleiros medievais, era uma pessoa aparentemente normal, apesar dos cabelos loiros caídos pelos ombros.
Sâmia parou seus olhos fixos nos dele e foi com alívio que percebeu que eles eram azuis, azuis e não cinza!
– Me desculpe, eu estava distraída.
O estranho sorria.
– Seu casaco está lá em cima. Foi muito gentil de sua parte; vou voltar e pegar.
Ela estendeu a mão para apertar o botão do seu andar, mas ele a segurou.
– Não se dê ao trabalho, outra hora que for mais conveniente.
Sâmia fazia força para não chorar. Por mais normal que a situação parecesse, ela tinha certeza absoluta que ele não era apenas um executivo qualquer arrumando uma desculpa para cortejá-la. Ele estava ali por motivos mais fortes.
O elevador parou e um casal entrou; estavam discutindo alto e não se importaram em manter sigilosa a conversa quando viram os dois ali.
– Eu quero saber o que você fez com o anel, Pâmela!
– Eu disse, eu já disse que perdi! – ela gritava ainda mais.
Sâmia recuou alguns passos e o estranho se aproximou de seu ouvido, dizendo:
– Ela vendeu o anel.
– Desligue esse celular agora, Roger!
Sâmia viu que o homem afastava a mulher com a mão, tentando ouvir o que lhe diziam.
Tudo aconteceu muito rápido: ele jogou o celular no chão e gritou:
– Você não vale nada! E, além disso, é burra! Vendeu o anel na loja de meu melhor amigo!
O elevador parou de novo e um grupo de executivos entrou enquanto o casal saiu ainda gritando pelo andar.
Sâmia permanecia muda e apertava sua prancheta com força contra o peito para evitar que ele percebesse o quanto ela tremia.
Assim que o elevador abriu e várias pessoas entraram e o grupo de executivos saiu, ela o perdeu de vista, passou apressada entre as pessoas, mas ele não estava em nenhum lugar onde poderia ser visto.
29 de julho à meia noite e vinte e cinco
Batidas desesperadas na porta e, assim que a abriu, ele caiu em seus braços; estava com o rosto coberto de sangue e seu corpo mutilado.
Estava sem voz, sem reação, e seu corpo tremia tentando se libertar daquele pesadelo. Sua testa foi se enchendo de gotas de suor, até que seu corpo despertou, ouvindo vozes que vinham do corredor.
– Está vendo? É esse animal aí! O senhor faça o favor de tirar esse bicho daqui. Meu filho é alérgico, não posso passar por aqui que toda vez ele começa a tossir sem parar.
– Sim, senhora, eu farei isso o mais rápido possível.
Reconheceu a voz, esperou alguns segundos e abriu a porta; conseguiu ver o zelador entrando no elevador e a senhora que arrastava o filho tossindo pela escada.
Fechando a porta, dirigiu-se à sacada. Viu quando o empregado colocou o gato na calçada e voltou a entrar no prédio. Ou estava tendo alucinações ou aquele gato estava mesmo tendo uma reação estranha.
Primeiro viu quando se colocou em pé somente com as duas patas traseiras e, depois, com uma pata dianteira segurava um graveto que apontava em direção à porta que havia se fechado. Suas patas trocavam passos como se estivessem em um duelo e ele soltava rugidos como se estivesse insultando o pobre homem.
Logo, deixou cair o graveto e, ainda andando com as duas patas, apoiou-se ao extintor na calçada. Cruzando as patas traseiras, encostou as costas e uma pata dianteira descansava na cintura.
Sentiu seu sangue gelar quando o gato a notou, fixando os olhos na sacada, olhando-a atentamente. Ainda de pé, levou uma pata dianteira em direção ao peito e, baixando a cabeça, curvou-se em uma reverência.
Sâmia entrou rapidamente, trancando a porta; dirigindo-se à cozinha, serviu-se de um copo de água, ingeriu duas pílulas na tentativa acalmar os nervos.
30 de Julho às duas e vinte e cinco
– Já pode acordar agora.
Ela abriu os olhos e lá estava ele sentado na beirada de sua cama, exatamente como ela se lembrava: aquela face pálida, os olhos cinza e os cabelos dourados caindo em desalinho pelos ombros.
Ela não pôde se mexer, apenas o olhava ali a sua frente.
– O que faz aqui?
– Senti saudades… Você não? – E seus lábios se abriram em um sorriso malicioso.
Sâmia levantou-se em um salto, acendeu a luz e olhou em volta. O quarto estava deserto. Olhou embaixo da cama com o coração pulsando em sua garganta. Havia sido tão real… Tomou um gole de água e voltou para cama já com os batimentos mais calmos. Ele se lembraria dela? Chegaria a sentir sua falta? Ela balançou a cabeça e a cobriu com o travesseiro; precisava de mais remédios; por mais que ele se lembrasse dela, a única coisa que ele poderia querer era vê-la morta.
Margarette estava com uma imensa cesta de vime coberta e se dirigia ao elevador quando Sâmia saiu dele.
– Sâmia, como está? Não a tenho visto ultimamente.
– Olá, Margarette. Sim, ando muito ocupada, tenho vindo em casa somente para dormir.
– Precisa de ajuda? – perguntou, apontando para a cesta.
– Não se incomode! A cesta é grande, mas o peso é pequeno – disse, levantando a toalha que a cobria.
Sâmia quase desmaiou ao ver o gato dentro da cesta. Não conseguiu esconder sua reação e deu dois passos para trás. Seu rosto havia se tornado branco como se todo seu sangue tivesse sido sugado.
– Sente-se mal, querida? – Margarette disse, tocando seu braço.
Com voz trêmula, ela respondeu:
– Está tudo bem, não se preocupe, não almocei, deve ser por isso.
– Então vá logo para casa e se alimente, menina. Depois conversamos, sim. Estou indo levar esse gato para a veterinária dar uma olhada nele. Sabe quem são os Lewis, não? Os que detestam gatos?
– Sim, a senhora Lewis estava conversando com o zelador sobre esse aí.
– Pois então, ela veio me falar que esse gato estava no parque quando o menino dela foi brincar e, como ele tem alergia, atirou uma pedra que felizmente não acertou, gritando para que fosse embora.
– E imagina o que aconteceu?
Sâmia teve medo de saber e aguardou a resposta em silêncio.
– Pois ela me disse que viu quando isso aconteceu e que o gato virou o traseiro para o pequeno e balançava de um lado para outro fazendo fusquinha e, se não bastasse isso, lhe mostrou a língua.
– Acredita, querida?
– Até mais, Margarette.
Sâmia ensaiou um sorriso que não apareceu e foi direto ao seu apartamento. Colocando a chave, ainda se virou e viu que Margarette entrava no elevador e o gato, virado para ela, acenava em despedida.
– É sua imaginação! É sua imaginação! – gritava, olhando para o espelho enquanto observava seu rosto banhado em lágrimas.
Não é possível, isso está indo longe demais! Por mais que tente me convencer que foi minha imaginação, como negar os últimos acontecimentos?
Não era somente ela que imaginava as coisas, Julia Lewins, seu filho, Daniel, o recepcionista e Margarette, algo deveria estar errado.
– Mas por quê? Por que depois de seis anos ele voltaria?
Poderia descrevê-lo detalhadamente: sua lembrança era perfeita, principalmente daqueles cabelos dourados em desalinho pela cabeça, o rosto pálido e os olhos misteriosos, o falcão que voava pelo tabuleiro, pousando na borda, tomando forma humana ao iniciar o último jogo…
– Era um falcão! Não era um gato! É isso!
Sentiu, então, um enorme alívio e o sangue que corria em euforia ao puxar pela memória a lembrança dele se transformando.
– Sâmia Rolfe, você anda levando muito a sério seu trabalho de crítica de literatura fictícia – disse em voz alta, sentindo-se melhor, e foi para sala onde começaria seu trabalho.
31 de julho às três e vinte e cinco
– Curve-se! – ele gritava com seus olhos de fogo.
Sentindo seu corpo curvar-se involuntariamente diante dele, observou, sem poder reagir, seus amigos sendo transformados em pedras.
– Agora poderá guardá-los para sempre.
Ele gargalhou diabolicamente, deixando cair a seus pés uma corrente com símbolos petrificados que outrora foram seus companheiros na mágica jornada.
1 de agosto às seis e vinte e cinco da tarde
Sâmia havia terminado o banho bem quente. Embora o verão tivesse chegado há algumas semanas, aquela noite estava extremamente fria. Ainda enrolada na toalha, aproximou-se do espelho e viu seu reflexo meio embaçado pelo vapor que envolvia o banheiro. Relembrou todos os sonhos que havia tido até então. Se ao menos tivesse alguém com quem conversar fora o Dr. Donhill, alguém que não acreditasse tudo ser esquizofrenia, ao menos tiraria um pouco da angústia trancafiada em seu peito. Na noite anterior, tinha certeza que alguém a observava. Acordou várias vezes sentindo uma presença, mas seus olhos nada puderam ver. Se ao menos o filho de Margarette chegasse agora, poderia aproveitar suas férias e viajar.
Levantou a mão e limpou parte do espelho para se ver melhor. Tinha tudo para ser uma pessoa feliz: tinha um rosto lindo, pele bem cuidada, nariz delicado, cabelos castanhos caindo pelos ombros e olhos escuros sem brilho. Era fácil para qualquer pessoa de bom senso saber que, apesar da beleza, ela não era feliz, seu olhar denunciava sua alma e os conflitos em seu coração.
Talvez devesse ir visitar seus irmãos e seu pai, nunca mais colocara os pés em sua antiga casa.
– Não, isso só pioraria as coisas.
Se voltasse àquele lugar, tinha certeza que seus pesadelos se tornariam ainda piores ou talvez o demônio viesse pessoalmente para assombrá-la. Ele com certeza a odiava por tê-lo vencido, por ter resgatado Jane, com certeza desejava vê-la enlouquecer até a morte.
Relembrou o dia que cometeu seu maior crime, quando encontrara aquele livro misterioso, com a capa de um material que, à primeira vista, parecia vidro, mas, ao tocar, era extremamente fina e leve; as folhas eram tão finas que temia que a qualquer momento fossem se rasgar, mas nada parecia abalar aquelas supostas frágeis folhas que guardavam um segredo maldito. E, por fim, relembrou a praga que rogara. Odiava a madrasta naquela época por ter invadido sua casa, tomando o lugar da mãe. Sim, ela havia desejado que ela morresse, e isso não aconteceu apenas uma vez, mas foi depois de encontrar o maldito livro que seu desejo se tornou realidade e sua vida se transformou num inferno.
Seu pai foi definhando e ela sabia que em breve morreria, e ainda para aumentar seu tormento descobriu que Jane estava grávida. Ela não poderia arcar com duas mortes e, então, ofereceu sua vida pela felicidade do pai e do irmão que ainda estava sendo gerado. Com isso, ela aceitou jogar um jogo mortal, saiu vencedora; teoricamente, sim, mas ela sabia que não havia vencedores em um mundo como aquele.
Seus dedos começaram a rabiscar imagens no espelho, enquanto seu pensamento vagava em um passado remoto. Primeiro desenhou um “J”, depois um “A”. Seu dedo corria tão rápido quanto seu pensamento entre a floresta que estivera, entre todas as apostas, os túneis que escolhera e os jogos que jogara.
– Jahean
Ela leu em pensamento o nome formado, mas não teve coragem de dizer em voz alta. Em um acesso rápido, fechou o punho e bateu com força no espelho, fazendo com que se partisse. Um filete vermelho agora escorria de sua mão, caindo sobre a pia branca.
– Droga!
Ela enfaixou a mão ferida e saiu para se vestir. Precisava se acalmar, logo estaria entrando em férias e iria esquecer tudo aquilo, precisava apenas se concentrar em seu trabalho, só isso.
Enquanto se vestia, se esforçava para lembrar mais detalhes daquele mundo mágico. Ela tinha que acreditar que isso nunca acontecera, mas, por outro lado, se tivesse certeza que tudo havia realmente acontecido, tiraria o peso das costas de ser doida.
As cenas que saltavam em sua mente, vagas, já estavam se dissipando. Apenas os sonhos recentes podiam dar uma visão perfeita do local, era produto do seu inconsciente.
– Mas o inconsciente não guarda fatos passados?
Segundo o seu médico, sim, e, se realmente foi um fato passado, foi porque realmente aconteceu. Exausta e com a cabeça para explodir, tomou mais dois calmantes e se estendeu no sofá, onde em pouco tempo dormia.
Ela estava tomando banho quando notou uma silhueta do lado de fora. Rapidamente puxou a cortina e teve a sensação que iria desmaiar. Lá estava ele, com os braços cruzados em frente ao peito encostado em sua pia, sorrindo.
Ela puxou a toalha e se cobriu o mais rápido que pôde, olhou para a porta que estava entreaberta pensando em como poderia correr dali sem esbarrar nele. Ele pareceu ler seus pensamentos, e inclinou levemente a cabeça em um meio sorriso.
– Tanta pressa?
– Que diabos está fazendo aqui?
Ele não respondeu, apenas continuava a olhando de cima a baixo e ela começou a se sentir inconfortável com aquela situação.
– Esteve me espiando durante o banho e não disse nada?
O sorriso dele agora aumentou, mostrando os dentes alvos.
– Pensei que soubesse que eu viria depois de tantos sonhos seguidos. Esperava por boas vindas e não um strip-tease.
O susto deu lugar a uma imensa tristeza, todos seus sonhos se misturaram e ela já não sabia mais o que era sonho ou realidade. Ignorando o comentário dele, tudo em que conseguia pensar era na saudade doentia, absurda que teimava em existir.
– Pensei que nunca iria te ver de novo.
– Eu também pensei.
A voz dele era séria agora e já não tinha mais aquele tom sarcástico que ela conhecia tão bem. Em passos lentos, ele foi se aproximando, sua mão tomou seu rosto e ele se aproximou ainda mais.
– Por quanto tempo mais vai fugir de mim?
“Não estou fugindo de você, mas, sim, de mim” – ela pensou, mas não disse.
A mão dele continuava em seu rosto, agora deslizando pelo pescoço e ela não podia evitar. Ele a puxou mais para perto e o corpo que já perdia o calor do banho agora voltava a esquentar.
Os beijos eram intensos. Ele a colocou sentada sobre a pia e puxou seu quadril para junto de seu corpo. Os batimentos se aceleravam a cada segundo. O calor que envolvia os corpos, a sensação era indescritível. A toalha deslizou e ela se viu arrancando aquela camisa de seda com certa violência.
Seus gemidos ecoavam deliciosamente, adicionados ao seu desejo ardente. Podia sentir seu clímax se aproximando mais e mais rápido.
Logo a calmaria, estava ofegante e ainda sentia seu corpo tremendo naqueles braços.
– Não vou permitir que vá embora uma segunda vez – ele sussurrou em seu ouvido e fechou os olhos, repousando a cabeça em seu ombro.
Sâmia acordou com a respiração alterada. Passando a mão pela testa, chegou a pensar que ardia em febre. Levantou-se e acendeu as luzes: já havia anoitecido.
Sentou-se no sofá e, olhando em sua volta, relembrou cada instante de seu último sonho, corou.
Sentiu-se aliviada por morar sozinha, esse era um momento em que qualquer pessoa perto dela notaria o acontecido.
Passando a mão pelos cabelos em desalinhos, suspirou fundo.
– Agora é demais. Nunca imaginei tal coisa, como posso sonhar com isso?
Ou tinha? Preferia achar que não, devia estar mesmo louca a ponto de desejar aquele que a aterrorizava tanto.
“Você ligou para o consultório do Doutor Donhill, favor, deixe sua mensagem após o sinal”.
– Doutor, aqui é Sâmia Rolfe, eu gostaria que retornasse a ligação assim que possível, é meio urgente, ando tendo aqueles pesadelos novamente, mas, desta vez, com uma frequência intensa: foi a décima terceira noite.
Sâmia sentiu um arrepio ao pronunciar a última frase. Respirou fundo e continuou:
– Gostaria que analisasse minha receita e aumentasse a dose dos calmantes. Obrigada.
Tomou um rápido banho, sentou-se no sofá com alguns livros.
Tinha que trabalhar. Deveria esquecer os sonhos ou nunca mais teria capacidade para fazer mais nada.
” Caso queiram comentar esse capítulo, basta curtir a página e/ou ir ao face do livro.”