Segundo Capítulo

 

Capítulo 2 – Uma visita já esperada?

 

O telefone tocou apenas uma vez e Sâmia o apanhou rapidamente.

– Boa noite, Dr. Donhill.

– Sou eu, maluca! Ta doente?

– Oh, olá, Scott, não estou doente, apenas pedi para meu médico para trocar minha medicação, e pensei que fosse ele retornando.
– Como estão todos?

– Todos muito bem. Adivinha? Estamos indo para a Itália!

– Como?

– Papai foi transferido para passar seis meses na empresa lá. Eles vão pagar por tudo, não é legal?

– Bem, é sim, quando irão?

Ela estava bastante surpresa com a repentina mudança. Embora não vivesse mais com sua família, não gostava da ideia de tê-los tão distante, como em outro país. Sentiu até por Jane. Tinha aprendido a lidar com ela, deixando de lado toda insanidade sobre magia e, é claro, Sâmia também tinha total interesse em não tocar mais nesse assunto após sua dramática experiência.

– Embarcamos semana que vem, quer ir também?

– Não posso, Scott. Tenho que trabalhar, você sabe disso.

Mesmo que pudesse, ao lado deles seria o último lugar onde passaria suas férias. Sentimentos opostos rondavam seu coração: amava seu pai, adorava Scott e Jerry, seu irmão menor, tolerava Jane, mas viver com eles estava fora de seus planos. Vivia muito melhor sozinha e, além do mais, sua família não tinha ideia do quanto seu estado clínico havia avançado, não se lembrava mais da última vez que havia dormido sem a ajuda de calmantes.

– No que está trabalhando agora?

– Se chama O circular, já leu?

– É claro que sim, aquele com a garotinha ruiva que endoida o velhote.
– Sim, esse mesmo. Estou quase acabando a crítica.

– Quando vai tirar férias?

– Na verdade, começo amanhã, mas estou pensando em trabalhar nas férias, indo à Europa para fazer uma entrevista com a autora.

– Isso é que é trabalho divertido, escrevendo sobre livros, viajando pelo mundo, conhecendo gente bacana.

– Sim, é quase perfeito. O problema é que se passam muitas horas lendo, às vezes, a noite inteira para se fazer uma crítica válida. Não que ficar acordada tenha sido um problema pra mim, de qualquer forma.

– Ainda não consegue dormir? – perguntou a voz abafada de Scott, que acabara de morder uma maçã.

– Não se preocupe tanto com isso; está tudo bem. Assim que tiver minha medicação alterada, tudo ficará certo.

– Humm, sabe o que eu acho? – disse, mordendo mais um pedaço – Que num conxegue dormir pulque num para de pensá nele.

Sâmia pensou que talvez não estivesse ouvido bem, afinal, Scott estava falando com a boca cheia.

– De que está falando?

– Você sabe quem. O cara de quem costumava de contar histórias…

– Ora, Scott, isto foi apenas uma história, fantasia, não foi real, nunca foi.

– Mais uma razão para sonhar com ele: você se apaixonou por uma ilusão.

As palavras do irmão soaram como uma explosão dentro dela. Embora apenas com dez anos, conversava com ele como se fosse seu melhor amigo. Desde que saiu daquele mundo mágico, ele era seu confidente. Mesmo com cinco anos, na época era ele quem ouvia todas as loucuras que havia vivido.

“Não, não havia, isso nunca aconteceu!” – Sâmia expulsou seus pensamentos e ia revidar o comentário quando Scott a cortou.

– Escute, o motivo pelo qual eu liguei é que fui fazer o que me pediu e agora estou encrencado.

– Como assim?

– Perguntei pra Jane sobre o livro e ela disse que nunca viu tal coisa.

– Scott, é claro que Jane jamais iria dizer que jogou aquele livro fora.

– Espere, é verdade. Primeiro eu procurei no porão, onde estão todas as caixas que você deixou, e elas estavam todas fechadas… Olhei em cada cômodo da casa, então pensei que talvez ela tivesse dado fim antes de você empacotar as coisas.

– Não, eu coloquei junto com os outros livros: Os gnomos azuis, pequenas fadas, eu acho.

– Eu achei esses dois, mas O mundo dos jogos não estava lá, em nenhum lugar.

– Bem, então, achando que ela teria escondido sem que você soubesse, eu inventei que na escola a professora havia pedido para comprar esse livro, porque ela iria fazer um resumo e provar que a magia não existe e que as adoradas crianças não deveriam deixar-se levar por coisas estúpidas.

A voz de Scott era séria e Sâmia quase acreditaria nele se não o conhecesse bem.

Explodindo em risadas, ela disse:

– Não posso acreditar em sua astúcia, seu diabinho.

– Então – disse Scott, orgulhoso de sua artimanha-, ela ficou super feliz por ter uma professora que penssase como ela e prometeu comprar o livro pessoalmente. Eu disse que você tinha esse livro e perguntei se ela não havia jogado fora. Ela disse que não, e acredite, Sâmia, ela estava dizendo a verdade, assim com a mesma certeza que tenho que ela me mataria se soubesse que ando lendo livros de magia. Eu afirmo que ela não sabe onde está e até arrisco dizer que nunca chegou a ver esse livro.

Nada iria agradá-la mais do que usar um de seus livros para uma tese contra a fantasia.

– É verdade, Sâmia – suspirou.

– Mas o problema é que, por sua causa, eu to enroscado.

– Por quê?

– Porque ela foi pessoalmente comprar esse livro e, imagina só, nenhuma livraria jamais ouviu falar nele…

– É estranho que não consigo me lembrar do autor, só pensei nisso agora que resolvi fazer uma crítica sobre ele.

– Sâmia, você está me ouvindo? Eu to enroscado. Se Jane não conseguir encontrar esse livro, como sei que não vai porque já fomos a todas as livrarias pelo Submundo, o que é que vou fazer?

– O que você disse?

Sâmia sentou-se ereta no sofá e apertou o telefone contra o ouvido para ouvir melhor.

– O que é que vou fazer?

– Não! Você usou uma expressão.

Sâmia não teve coragem de repetir.

– Pelo Submundo? – disse Scott, rindo. Melhor que pelos céus, não? Sei lá… vi em algum livro, eu acho.

Sâmia começou a sentir o medo voltando, a sensação de insegurança de sua adolescência. Procurou esquecer a sensação, focalizando no problema do irmão.

– Você acaba de dizer que vão mudar, então não vai precisar mais comprar livro nenhum.

– Aí é que está o problema: eu disse que foi a nova professora que pediu, disse que tinha conversado com ela para saber coisas da escola nova e ela falou do livro. Era uma desculpa perfeita. Mamãe não ia contrariar a nova professora logo no primeiro dia.

– Bem, me deixa pensar. Bom, diga a ela que você se enganou com o título.

– Não vai dar certo, Sâmia. Depois de quinze livrarias buscando O mundo dos jogos, eu não posso dizer que era O tabuleiro de Xadrez.

Sâmia sentiu mais um arrepio com as últimas palavras de seu irmão, por que, de repente, ele estava citando coisas de sua alucinação? Respirou fundo. A culpa era toda sua por encher a cabeça dele com suas loucuras, ele provavelmente se lembrava das histórias mais do que ela.

– Muito bem, diga que é O mundo dos jogos, de Violet Johnson.

– Eu conheço esse livro, sua doida: é literatura e todos queriam nos vender esse. Ela sabe que não fala de magia.

– Ai, meu Deus. Sâmia pensava o mais rápido que podia.

– Pode me tirar dessa, foi você que me colocou.

Seus dedos batiam rápido no laptop em seu colo.

– Ok, achei! Diga que é de John Smith, O mundo do jogo, é parecido.

– Do que fala?

– Não faço a menor ideia; acabo de achar na internet, mas é sobre magia.

– Tem certeza?

– Acho que sim…

– Sâmia, e se ela quiser ler?

– Jane lendo livros de magia? – disse Sâmia rindo – Seria mais fácil o rei do Submundo vir me visitar… Seu sorriso morreu em sua última frase e ela começou a sentir muito frio. A frase escapara de sua boca antes que pudesse impedi-la, precisava tomar mais um calmante.

– Está certo, vou falar então. Preciso desligar agora, se cuida, viu?

Tentando controlar o nervosismo e suas mãos que tremiam o suficiente para que deixasse escapar o telefone, disse:

– Cuide-se também, tento te ligar semana que vem antes de viajarem. Agora também tenho que desligar. Diga “oi” para papai, Jerry e Jane.

– ok, beijos

– Até logo.

Colocando o laptop no sofá, ela correu ao banheiro e afundou sua cabeça em água fria. O que estava acontecendo com ela? Por que de repente tudo parecia tão real como antigamente? Por que diabos inventou de fazer uma crítica daquele maldito livro, o livro causador de sua patologia? Realmente não estava em seu juízo perfeito.

A água pareceu acalmar um pouco. Foi à cozinha, preparou um chá e, sentando-se novamente no sofá com suas anotações, se enrolou em um cobertor. A noite estava fria e o tempo nublado: tudo indicava que uma tempestade iria desabar a qualquer momento.

Talvez devesse assistir a um filme em vez de trabalhar. Não, ela precisava terminar logo, faltavam apenas algumas páginas. A tempestade começara e o vento batia na janela, fazendo-a vibrar.

Sorrindo para si mesma, pensou que talvez vivesse há tempo demais sozinha e que deveria adotar um gato de estimação. Ao se lembrar do gato, a sensação incômoda reapareceu.

Balançando a cabeça negativamente, voltou a olhar sua tese.

Fez algumas notas e voltou a pensar: “como o livro havia desaparecido daquela forma?” Assim como havia surgido, ele desaparecera. A última vez que o viu foi antes de cair naquele mundo. Ou tinha guardado numa caixa logo após voltar e nunca mais a abriu? Teria o rei ficado com ele para que nunca mais ela pudesse voltar?

– Será que eu conseguiria voltar?

Balançou a cabeça e pensou o que diria Dr. Donhill se soubesse em que ela estava pensando naquele momento.

Olhou para sua mesa central e viu o relógio que acabara de mudar, exatamente meia noite. Seu medo aumentou. Lá fora o vento uivava, e a água caindo com toda força trazia a sensação que tudo iria desabar. Da porta de vidro que dava para a sacada, uma sombra que crescia em sua direção, primeiro uma, depois duas, três, quatro patas…

Sâmia fechou os olhos com força e seu corpo todo se paralisou. O trovão explodiu, fazendo um barulho ensurdecedor. Agora o barulho havia cessado, mas ela não conseguia abrir os olhos, ela sentia a presença dele chegando, se é que já não estava ali. O frio subia por toda sua espinha, arrepiando a nuca. Ela mordia os lábios com força para ter certeza que estava acordada.

– Sim, você está – disse uma voz masculina.

Sâmia abriu os olhos quando ouviu a voz suave e voltou a fechá-los ainda mais rápido que da primeira vez. Sim, ela o vira. Não, não era Jahean, era o estranho do casaco e com o casaco! Poucos segundos foram suficientes para reconhecê-lo exatamente como viu da primeira vez.

– É sua imaginação, é sua imaginação – ela repetia em um sussurro, abrindo um pouco os olhos segundos depois, para fechá-los novamente.

– Desaparece, criatura dos infernos! Eu to sonhando! Eu to sonhando!

O estranho estava sentado bem a sua frente com as pernas tranquilamente cruzadas.

Sâmia, a essa altura, já se perguntava que pecados teria cometido para ser punida daquela forma, se já não bastasse não ter uma vida como as outras pessoas agora os demônios saíam do inferno para persegui-la. Nem ao menos desmaiar ela conseguia, ao menos morreria sem sentir, mas não, sua punição era tamanha que ela estava totalmente consciente.

– Minha senhora, eu devo lhe dizer que tenho a noite inteira para permanecer aqui, então, se pudesse colaborar falando comigo, lhe pouparia uma noite incômoda sentada nesse sofá.

Sâmia abriu os olhos e o olhou longamente.

– Você não é uma alucinação, não é mesmo?

– Nem de longe – sorriu o homem.

Ele se levantou e o corpo dela retraiu no sofá à medida que ele caminhou dois passos e, depois, apontou para a sua mesa de centro.

– Se importa?

Sâmia não podia acreditar no que estava vendo: um homem que, de maneira alguma, parecia normal, que tinha lhe emprestado um casaco, que o recuperou de volta sabe se lá como, agora aparecera por mágica em sua sala e estava pedindo permissão para comer uma maçã.
Ele não esperou pela resposta dela: apanhou a fruta e a mordeu com vontade.

– Fiz uma longa viagem, queira me perdoar.

Ela ficou ali olhando ele terminar de comer sem conseguir dizer nada e sem conseguir tirar os olhos dele. Suas alucinações já tinham ido longe demais, assim que acordasse ou ele saísse, ia se internar.

Quando ele terminou, olhou em volta procurando por um cesto de lixo! E, vendo que só encontraria um na cozinha, colocou uma mão sobre a outra, fazendo os restos do que fora sua maçã desaparecer.

Ele sorria olhando fixamente pra ela. Ela abriu a boca para tentar dizer alguma coisa quando o grande espelho da parede se partiu em centenas de pedaços, fazendo-a saltar. Ele olhou para a moldura vazia e, ainda mastigando, disse:

– Me perdoe, usei energia demais, não estou acostumado a usar magia na Superfície.

Ele bateu palmas duas vezes e ela assistia hipnotizada a todos os cacos voltando para o lugar e, em segundos, seu espelho estava novamente intacto. Seus olhos foram automaticamente para a fruteira: havia uma pera, uma ameixa e um cacho de uvas. Sim, ele havia comido a maçã. Ela tinha certeza que havia colocado uma fruta de cada pela manhã, então, se não estava era porque ele realmente estava ali.

Sâmia cobriu as orelhas com ambas as mãos.

– Estou sonhando, estou sonhando – ela falava e chorava ao mesmo tempo, implorando para ele desaparecer.

– Minha senhora, eu preciso que me escute.

– Estou sonhando, estou sonhando! – ela repetia sem abrir os olhos.

Ele se aproximou e se sentou ao seu lado, fazendo com que ela levantasse a cabeça e olhasse para ele. Delicadamente, retirou um lenço do bolso e entregou a ela.
Sâmia estendeu a mão trêmula e viu a letra “J” gravada no lenço de seda. O estranho, parecendo ler seus pensamentos, disse:

– O lenço é dele, mas eu não sou ele, como já deve ter notado.

Ela olhou mais uma vez para a inicial gravada e o devolveu. O estranho hesitou, mas acabou por pegá-lo de volta.

– Quero que vá embora agora mesmo.

– Minha senhora, preste atenção: eu não vou embora até conseguir o que vim buscar e não me importa o quanto tenha que esperar.

Sâmia deu um longo suspiro. Tudo bem, ela era doida e tinha alucinações, mas não era burra. Se ela não aceitasse falar, ele continuaria ali e tudo o que ela queria era que ele fosse embora.
Ela deu mais um suspiro e disse:

– O que quer?

– Minha senhora, primeiro quero me desculpar. Como disse, não tenho experiência com o portal e…

– O que você quer de mim? – ela perguntou com certa insistência.

– Não estou aqui para lhe fazer mal e não quero causar uma má impressão, não precisa se colocar na defensiva.

Sâmia olhou fundo em seus olhos, acreditou que ele não queria lhe matar ou qualquer coisa do tipo, mas tudo que ela menos queria era amizade com gente daquele mundo.

“Tente ser educada“ – disse para si mesma.

– Vou fazer um chá – disse, levantando-se.

– Não, senhora, não é preciso.

Ela então se virou e disse séria:

– Qual seu nome?

O estranho se levantou e estendeu a mão.

– Leander. Esqueça o Simons; disse apenas porque estudei que é um costume daqui se apresentar assim, mas Leander, com certeza.

Ela não tocou a mão oferecida e disse:

– Muito bem, Leander, você vem a minha casa e deseja me falar, então espere que eu faça um chá. Se quiser falar comigo, terá que ser do meu jeito.

Leander ficou surpreso com a reação daquela jovem. Há um minuto ela estava apavorada com sua chegada e, agora, ela se mostrava firme. Mesmo com medo, ela se fazia forte. Ele fizera a escolha certa, essa jovem era perfeita para ajudá-lo em seus planos.
Sâmia voltou com o chá e lhe entregou uma xícara. Leander aceitou educadamente. Ela tomou um generoso gole para se acalmar e disse:
– Muito bem, diga a que veio e depois vá embora.

– Minha senhora, não é tão simples assim… eu…

– Sâmia, me chame de Sâmia.

– Temos o costume de tratar as pessoas com…

– Não me importa seus costumes, está em minha casa e em meu mundo. Se quiser falar comigo, me chame de Sâmia.

Leander teve vontade de rir, embora sua expressão fosse séria. Sem dúvidas, ela tinha mais potencial do que havia ouvido.

– Sâmia, certo. Como disse, meu nome é Leander, sou um habitante de Sunset e tenho um dos maiores cargos perante sua majestade.

Ele deu uma pausa e continuou:

– Jahean, o imperador do Submundo.

Sâmia tremeu ao ouvir o nome dele. Já não mais podia acreditar que estava sonhando, ele realmente existia e depois de seis anos um de seus homens havia vindo visitá-la.

Ele observava a expressão de seu rosto tentando entender o que se passava naquela mente e procurando reações que o nome de seu rei causaria nela, porém, ela era realmente boa em disfarçar seus sentimentos, nem ao menos um piscar de olhos. Ele continuou:

– Vim à Superfície para buscar por ajuda por um pequeno problema que estamos enfrentando ou iremos enfrentar em breve.

– Continue.

Leander se ajeitou mais no sofá e procurou olhá-la nos olhos para que ela realmente entendesse o que ele queria dizer.

– Sua majestade Jahean cometeu um erro terrível.

– Deixe-me adivinhar – Sâmia interrompeu- ele se arrependeu de tentar me matar e agora manda você para se desculpar? Pois não aceito, pode ir embora.

– Minha senhora, me desculpe, mas Jahean nem ao menos sabe que estou aqui, e, com certeza, serei punido rigidamente se ele descobrir.

Sâmia agora estava confusa, então não era ele que perturbava seu sono?

– Continue.

Leander notou que havia despertado o interesse dela, então se apressou em dizer:

– Tentarei ser breve, Sâmia, eu vim aqui porque Jahean resolveu se casar e conto com sua ajuda para impedir que ele cometa esse disparate.

Teria entendido direito? Ele resolvera se casar? E o que ela tinha com isso?

– Você deve estar se perguntando o que tem com isso, mas eu lhe peço que me ajude e prometo recompensá-la de alguma forma.

– Me recompensar? Eu odeio teu rei, ou seja lá o que ele for em seu mundo. Ele é o causador dessa subvida que tenho. Eu não me importo com o que ele faz com a vida dele, não me importo com ele da mesma maneira que ele não se importa nem nunca se importou comigo!

Leander cruzou as mãos e, pensativo, as levou à boca e disse:

– E seria esse o motivo para não esquecer alguém que detesta tanto?

– Por que não esqueço? É o que tenho tentado fazer nesses últimos malditos seis anos! Acha que posso? Se pudesse eu teria esquecido!

– Minha jovem, confesso que a tenho observado durante vários meses e posso afirmar que sua vida não está de acordo com os padrões normais.

– Padrões normais? Essa é ótima. Eu sou completamente doida, graças ao desgraçado daquele demônio que você chama de rei.

Leander passou os olhos pelo apartamento em silêncio. Embora fosse um assunto urgente, ele teria que ter muita calma para convencê-la.

– Eu faria qualquer coisa para esquecer o que vivi.

Sua última frase despertou o interesse de Leander, seus olhos brilharam e ele se sentou ereto no sofá.

– Faria qualquer coisa?

– Faria.

– Me ajude então – disse, segurando as mãos dela.

– Diga que aceita me ajudar e eu farei com que seu passado deixe de existir.

Sâmia olhava as mãos dele sobre a suas e a ansiedade em seu olhar. Poderia confiar nesse homem? Não estaria a mando de Jahean para lhe atormentar?
Ela retirou suas mãos e se levantou.

– O que exatamente quer que eu faça?

Leander se animou e também se levantou.

– Venha comigo, seja minha convidada. Temos três meses para fazer com que ele veja o erro que está cometendo.

– Como é que é? Você acha que eu vou voltar exatamente pro lugar que eu quero esquecer?

– Sâmia, por favor, será apenas por três meses, eu posso fazer com que seu passado seja apagado. Podemos voltar no tempo, por uma causa justa, é claro. Mas há outras formas, poções, interferência mental, enfim, eu posso fazer com que esqueça que esteve lá, com que seu passado seja apagado por completo e posso te deixar seguir sua vida como desejar.

Ela hesitou. Se apagasse seu passado, se voltasse aos seus treze anos, como seria sua vida agora? Teria seu apartamento? Seu emprego? Se ela voltasse no tempo a ponto de impedir que sua mãe morresse?

– Posso escolher o tempo que quero voltar?

– Estou limitado à data que visitou meu mundo.

Isso não ajudaria em nada. Se não pudesse ter sua mãe de volta e apagasse sua experiência, apenas deixaria de ser doida para ser revoltada.
Vendo sua hesitação, Leander insistiu:

– Imagine sua vida como está hoje. Sim, isso eu posso fazer. Sei que gosta de sua maneira de viver, posso deixar exatamente como está. A diferença é que não vai ter pesadelos ou lembranças que a atormente.

– Sem remédios?

– Sem remédios – ele afirmou com um sorriso.

– Sente-se.

Eles voltaram a se sentar e agora ele explicava o que esperava que ela fizesse.

– Como eu disse, Jahean decidiu se casar e sei que sua presença lá tornaria tudo mais confuso. Ele já está confuso com tudo isso, acredite em mim.

– Por que não quer que ele se case?

– Porque o casamento é eterno em nosso mundo e deve ser feito para a felicidade eterna. É para ser o paraíso e não um purgatório.

Casamento eterno? Sâmia sentiu um aperto em seu peito; ela também estava confusa.

– Quando ele me vir, quem estará em um purgatório serei eu. Ele simplesmente me odeia.

– Ele não te odeia, eu posso garantir.

– Se ele me mandar embora?

– Ele não vai mandar.

– E se ele mandar?

– Se ele mandar e eu não puder interceder ou se nosso plano não funcionar, eu manterei minha promessa, cuidarei para que tenha uma vida sadia. Mas apenas se não der certo. Você não pode desistir em hipótese alguma.

Ela começou a pensar. Ela ganharia das duas formas. O que tinha a perder?

– Por que não quer que ele se case?

– Eu já lhe disse: Rafaela não serve para ele.

– Me diga a verdade, quero saber em que estou me metendo.
Leander não pensava em explicar detalhes, mas também não poderia deixar a jovem sem resposta.

– A princesa Rafaela havia sido prometida ao Príncipe AL, eles são primos, e Jahean é muito amigo da mãe de Al, porém, ele desistiu do casamento para não haver uma desavença entre dois reinos. Jahean teve a brilhante ideia de se casar com ela.

– O quê?

– Sâmia, isso não é importante, o importante é o que nós temos que fazer.

– Não é importante? Eu quero entender bem essa história, quero saber agora mesmo por que Jahean comprou um problema que não era dele.

– Eu lhe disse: ele tem muita estima pela Rainha, a considera como sua própria mãe.

– E agora ele decide se casar só porque é amigo da mãe da noiva?

– Mãe do noivo – corrigiu Leander. – Eu acredito que ele deve ter motivos pessoais. Como disse, ele anda muito confuso há muitos anos, deve ter pensado em ajudar a Rainha, sim, mas também tomar uma decisão que já deveria ter tomado.

– Por quê?

– Não se cansa de fazer perguntas?

Sâmia não respondeu e ele continuou:

– Como rei dos reis, senhor absoluto do Submundo, ele já deveria estar casado. Só que Rafaela é definitivamente a escolha errada.

– Ela o ama?

– Rafaela? Está brincando? Rafaela só ama a si mesma, é insuportável. Acredite em mim, Sâmia, eu não faria nada para prejudicar Jahean, nunca, mesmo que significasse a minha morte.

Ela estava curiosa com a intensidade que Leander falava. Havia alguma coisa estranha nisso tudo que ela ainda não conseguia entender direito.

– Então aceita minha proposta?

– Uma última pergunta.

– Diga.

– Por que se importa tanto com ele?

Leander passou a mão pelo cabelo e suspirou.

– Devo a ele minha vida. Ele me ajudou uma vez e agora é hora de retribuir, mesmo que ele não saiba que precisa ser ajudado.

– E então?

– Mas o que acha que eu posso fazer? Chegar lá e dizer: “Olá, Jahean, lembra-se de mim? A menina que tentou matar? Então, vim aqui para lhe pedir que não se case…”

– Não, é claro que não!
– Sâmia, por favor, entenda que ele não tentou te matar.

– Você não estava lá! Não sabe o que ele fez!

Leander não respondeu. Depois de um longo silêncio, disse:

– Eu só quero que tente se aproximar dele, ignore-o até o início. Ele ficará tão confuso quanto você quando descobrir que está vivendo sobre o mesmo teto que ele. Deixe o tempo passar, eu cuidarei de tudo para que se aproximem e, quando ele confiar em você o suficiente, você dirá a ele sua opinião. Não peça que ele não se case, apenas diga o que pensa sobre passar a eternidade com alguém que não se ama.

Ela estava indecisa e ele começava a temer que tudo seria em vão. Se ela não aceitasse, ele não conseguiria pensar em nenhuma outra forma de acabar com aquele casamento.

– Que garantias eu tenho que vai cumprir sua promessa?

Leander sentiu-se ofendido.

– Minha senhora, há leis em meu mundo tão rígidas quanto no seu. Ninguém tem permissão de interferir na vida dos mortais, mas eu estou disposto a conseguir o objeto necessário para que isso aconteça e, nem que eu pague com minha existência, eu farei o que lhe prometi.

– Está certo.

– O quê? – perguntou surpreso.

– Eu aceito. Sou doida, vivo sob efeito de remédios, minha infância destruída, que eu tenho mais a perder?

– Obrigado, Sâmia! Ele a abraçou em um impulso e ela, surpresa pela reação dele, não sabia como reagir.

Assim que ele a soltou, disse:
– Quanto tempo precisa para se aprontar?

– Não muito.

Ela o deixou na sala e foi em direção ao quarto, de onde pegou uma pequena mala e, colocando-a em cima da cama, pensava.

“Vou levar pouca coisa, porque sei que assim que ele me vir vai me fazer voltar”.

Ela estava feliz com a ideia. Sentiu que podia confiar em Leander, afinal, Jahean a faria ir embora e ela ganharia sua vida de volta. Era apenas uma questão de horas para que ela tivesse uma vida digna. Colocou algumas peças de roupas e fechou a mala, depois tornou a abri-la.

– E se ele não a mandasse embora assim tão rápido?

Era melhor ter com o que se distrair: colocou um caderno, algumas canetas, cópias dos papéis em que estava trabalhando e o novo livro que trabalharia no segundo semestre. Colocou também seu estojo de tintas, com o qual se distraia pintando quadros e tornou a fechar a mala.

Ligou para Scott e disse que resolvera viajar aquela noite mesmo para uma oportunidade única de trabalho. Ligou também para Margarette e disse que já estava no aeroporto, em caso de ela querer se despedir e encontrar aquela criatura lá. Prometeu trabalhar muito e que voltaria pronta para viajar com ela e seu filho. Avisou, ainda, o escritório que trabalharia nas férias e que, assim que terminasse o próximo livro, entregaria tudo para poder viajar.